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Um réquiem para a imprensa livre

Como é irônica a história! O Charlie Hebdo (ou "O Semanário do Charlie") é filho legítimo do que há de mais autêntico na evolução do jornalismo francês. A arte da imprensa irônica, iconoclasta e difamatória se desenvolveu do reinado de Luis XV ao de Luis XVI, se continuando durante a monarquia constitucional de 1789-1792 e a república jacobina de 1792-1794. Chamados "libelos" tais jornais traziam, nos anos que antecederam a revolução francesa, relatos escandalosos das questões públicas e da vida privada das grandes figuras da corte e de Paris, desafiando a censura, denunciando um rei impotente, uma rainha entregue aos amantes, nobres depravados e um clero ganancioso.

Os autores de tais obras eram fichados nos arquivos da polícia como "libelistas" e eram perseguidos pelos agentes da polícia imperial por todos os cantos da Europa, na tentativa de escapar da tenebrosa Bastilha escondidos nas ruelas de Bruxelas, Amsterdã, Berlim, São Petersburgo e, sobretudo, Londres. Indecentes, difamatórios e tendenciosos os textos tinham outra característica em comum: eram uma excelente leitura, dedicada a aventuras de padres em bordéis, a antros de jogatina e a vícios diversos de aristocratas depravados. As biografias hostis normalmente tinham títulos começando com "Vie privée de..."(vida privada de...).

Ao revelarem a vida privada e detalhes sórdidos da rotina de figuras da aristocracia, zombando e indignando, destruíram reputações e apressaram a demolição do edifico instável na qual se transformara a monarquia francesa.

Estava criada uma nova forma de imprensa que. anos séculos seguintes, reverberou em todo o mundo. Assim surgiu o mito da imprensa livre, que resistiu durante os últimos duzentos anos a todos os tipos de desafios de sobrevivência. Mas hoje, com o atentado brutal à redação do Charlie Hebdo, causando a morte dos maiores ícones da imprensa francesa, numa ousada truculência que nenhum monarca imperial ou ditador fascista da dilacerada Europa jamais tentou, um ciclo se fechou.

Agora, o reinado do medo se instalou no mundo da imprensa livre, pois a partir de hoje, sempre que jornalistas, redatores, chargistas ou repórteres de espírito libertário se reunirem na redação de um jornal irônico, o fantasma da intolerância e do ódio embotará suas mentes e ameaçará suas vidas. 

Adeus Charlie Hebdo. Miremos as trevas. 

Leiam abaixo texto da imprensa sobre o atentado mortífero contra o CHARLIE HEBDO.

Irreverente e ácido, jornal ‘Charlie Hebdo’ é célebre por publicar duras críticas ao Islã

Publicação despertou a ira de fundamentalistas religiosos com caricaturas do profeta Maomé - o que é considerado blasfêmia

Por O Globo - 07.01.2015

Provocador e de extrema esquerda, o semanal “Charlie Hebdo”, se define, em seu próprio site, como um “jornal satírico e social, sem anúncios, que chega todas as quartas-feiras à sua banca de jornal”. O veículo francês, com sede em Paris, traz sempre muitas charges, reportagens e piadas polêmicas.

O jornal segue a tradição de um jornalismo francês extremamente crítico, que remonta à imprensa que denunciava os excessos de Maria Antonieta no período pré-Revolução Francesa. E, se no século XVIII, o alvo era a família real e a corrupção na corte em Versalhes, a mira do “Charlie Hebdo”, hoje, está voltada para políticos, banqueiros e líderes religiosos.

Com tom irreverente, o jornal costuma publicar críticas à extrema direita e ao fundamentalismo religoso, seja o islâmico, o católico ou o judeu. O ponto de vista da revista reflete “todo o pluralismo da esquerda, e até mesmo os abstêmios”, como disse o editor Stephane Charbonnier, conhecido como “Charb”, em entrevista ao jornal suíço “Le Courrier”, em 2010.

O veículo já sofreu graves consequências por suas críticas ácidas ao Islã. A sede do “Charlie Hebdo” foi alvo de um incêndio criminoso em novembro de 2011, após o jornal ter publicado uma imagem do profeta Maomé em sua capa. Sem em nenhum momento abrandar suas críticas, o veículo voltou a sofrer um atentado terrorista nesta quarta-feira. Pelo menos 12 pessoas morreram e dez ficaram feridas em um ataque a tiros em seu escritório em Paris.

Enquanto alguns veículos chamam a decisão do semanário de zombar do profeta Maomé de “corajosa” ou “uma questão de princípios”, outras publicações consideram algumas charges e artigos “perigosamente irresponsáveis”.

Lançado em 1969 pela equipe de um outro jornal satírico — o Hara-Kiri —, “Charlie Hebdo” circulou regularmente na França até 1981. Por não ter, por escolha, nenhum anunciante, a receita da companhia vem inteiramente de seus compradores e assinantes, o que, muitas vezes, gera problema financeiros para a firma. O “Charlie” voltou à ativa em 1992, quando a primeira edição da nova fase vendeu 120 mil exemplares. A tiragem foi crescendo gradualmente até atingir 140 mil cópias em 2006, antes que as vendas começassem a cair: cerca de 55 mil cópias vendidas em 2009 e 50 mil em 2011.

A redação conta com cerca de 20 ilustradores e 30 redatores e colunistas regulares ou ocasionais. O editor-chefe, Charbonnier, e os desenhistas Cabu, Wolinski e Tignous estão entre os mortos no atentado da manhã desta quarta-feira. A equipe costumava se reunir às quarta-feiras no escritório para decidir os assuntos da semana.

Em sua edição de 8 de fevereiro de 2006, o “Charlie Hebdo” publicou um grande debate sobre a liberdade de expressão que incluiu doze caricaturas do profeta Maomé. De acordo com os preceitos do Islã, representar Deus ou o seu profeta é uma blasfêmia. Originalmente publicado em setembro de 2005 no diário dinamarquês Jyllands-Posten, os desenhos provocaram protestos violentos no mundo muçulmano.

Já em 2011, o semanário voltou a despertar a fúria dos fundamentalistas ao publicar uma edição especial em que o profeta Maomé aparecia na capa. Mesmo antes do lançamento do jornal, sua sede foi devastada por um incêndio criminoso, na madrugada de 2 de novembro.

Uma curiosidade: o nome “Charlie” não é uma referência ao presidente francês Charles de Gaulle, mas ao fato de que, originalmente, o jornal também publicava as tirinhas do personagem americano Charlie Brown.

José Cerqueira Dantas - Diretor presidente do Grupo Med Imagem

jcerqueira@medimagem.com.br

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