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Não existe raça pura

Nossa história ninguém sabe direito, é mistério em pleno descobrimento. A cada novo achado fóssil, a cada nova ossada arcaica que emerge, a cada nova tumba involuntária ou não, temos de rever nossa saga. A narrativa construída ao longo do século 20 contava que viemos todos de uma única linhagem emigrada da África há não mais do que 120 mil anos. Essa onda migratória de Homo sapiens teria paulatinamente se espalhado por todo o planeta, substituindo completamente nossos primos Homo erectus e neandertais, que ocupavam a Eurásia. O continente mais recentemente ocupado teria sido a América, a partir de uma migração recente pelo estreito de Bering, que liga a Sibéria ao Alasca, após a última glaciação.

Uma cultura paleolítica do Novo México, denominada Clovis, teria sido a primeira população humana da América do Norte, há cerca de 13.500 anos. Sucessivas ondas migratórias teriam então chegado ao restante do continente, do norte para o sul. Essa teoria foi apoiada pelos avanços da biologia molecular na década de 80, com a análise de DNA mitocondrial de populações atuais. Entre o passado e o presente uma linha reta, uma raiz clara, uma narrativa confortável.

Entretanto, as pesquisas moleculares da última década, realizadas com DNA mitocondrial e autossômico de diversos achados fósseis, indicam que nada disso se passou. Ou melhor, provavelmente tudo isso se passou muitas vezes. As últimas dezenas de milhares de anos são uma barafunda complexa de fios que tentamos desembaraçar, separando em camadas as tranças de cabelo do tempo. Não viemos de uma única linhagem, nosso passado é um rizoma de tipos diferentes de seres humanos.

Há semelhanças genéticas, por exemplo, entre espécimes de Homo heidelbergensis que viveram no norte da Espanha há 400 mil anos e hominídeos siberianos de apenas 40 mil anos atrás, chamados de denisovanos. A análise de DNA autossômico indica que os denisovanos eram mais aparentados aos neandertais do que ao Homo sapiens, mas o DNA mitocondrial indica cruzamento com algum outro tipo de hominídeo ainda não identificado. Hoje está claro que, com exceção das populações subsaarianas, há cerca de 4% de DNA neandertal no genoma humano. Da mesma maneira, 4-6% do DNA de populações da Austrália e Melanésia provém dos denisovanos.

Para complicar o cenário, acumulam-se evidências de ocupação humana na América antes da cultura Clovis. Notavelmente, o sítio de Pedra Furada no Piauí apresenta indícios de presença humana com até 55 mil anos de idade. Descoberto em 1973 pela arqueóloga Niède Guidon, o sítio de Pedra Furada teve por muitos anos a datação e a natureza de seus vestígios disputadas, mas a descoberta de outros sítios pré-Clovis em todo o continente tem feito a balança pender para a ideia de que ondas migratórias sucessivas atravessaram a América bem antes do que se pensava.

A história ainda será reescrita muitas vezes, até entendermos nossa trajetória complexa e vertiginosa. Uma certeza, contudo, já se apresenta: não existe raça pura, somos híbridos desde o início.

Fonte: Mente e Cérebro

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