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Clara Mello: “Eu sou muito visceral, eu sou muito intensa, muito, muito”

Sim, tudo é muito intenso para a escritora Clara de Melo e Silva, mas é bom explicar que a sua intensidade é acompanhada de leveza e sensatez de um modo todo particular. O motivo talvez esteja no seu mapa astral. Ela, que estuda Astrologia de forma séria, traz o Sol em Virgem e o planeta Vênus no signo da emoção. Para o leigo, isso pode parecer nebuloso, mas em Clara o que vibra é o sentido do poético, seja nos astros, na vida, nas pessoas, nas cidades, na arte e na floresta, esse outro lar.

Piauiense, radicada no Rio de Janeiro, ela expõe – em sua quinta obra, chamada “Vênus em Câncer” – toda a sua veia lírica. Clara Mello, como ficou conhecida, diz que demorou a se convencer de que é poeta, mas quem lê o seu mais recente livro, não entende o porquê. A oportunidade para confirmar isso aconteceu nessa terça-feira, dia 29 de janeiro, quando a escritora lançou oficialmente sua obra em Teresina. Será no restaurante Nóris Cozinha Saudável, que fica na rua das Tulipas, 241, Jóquei, a partir das 20 horas.    

Pela natureza poética da escritora, nesta entrevista, feita pela jornalista Catarina Santiago e pelo diretor-presidente da Med Imagem, dr. José Cerqueira, procurou-se manter uma dicção própria da fala. Nela, Clara – que é filha do humorista João Cláudio Moreno e da cantora Patrícia Mellodi – nos conta sobre o seu processo criativo, fala da literatura feita por mulheres, da sua causa maior, que é a defesa da Amazônia, além do seu amor visceral pelo Piauí, que ela diz ser o seu “lugar”. A entrevista foi realizada no Olik Bistrô que, gentilmente, abriu suas portas numa bela manhã de janeiro.  

JC – Então, o que corre mais na veia de uma poetisa, é sangue ou poesia?

Os dois...né! Tanto a matéria quanto o abstrato são fortes do mesmo jeito. 

CS – Esse é o teu primeiro livro de poesia, é o quinto da carreira, sendo todos escritos em prosa, mas é o primeiro em poesia. Você traz um pouco da astrologia nele, que é uma paixão sua. Eu queria saber como nasceu esse livro?

Eu sempre fui leitora de poesia, mas eu tinha pouca poesia de volume e nenhuma confiança na minha poesia. Era um território mais desconfortável para mim. Eu estava me formando na faculdade e, aí, eu estava escolhendo o tema da monografia e escolhi Fernando Pessoa (poeta português) e astrologia. E fiquei muito tempo imersa tanto com a poesia quanto com a astrologia. Fiquei estudando bastante para fazer esse trabalho e, desse período de muito estudo, surgiu, além da monografia, esse livro, essa vontade de organizar o que eu já tinha de poesia.

CS – Soube que o livro nasceu em guardanapos...fala um pouco do teu processo criativo na poesia...

Tudo meu é muito visceral, mas a poesia é mais ainda. Porque eu acho que como a prosa já é um território um pouquinho mais seguro para mim, porque já é uma coisa que eu faço há mais tempo, preciso, muitas vezes, trabalhar de encomenda, com prazos e tudo, é uma coisa que eu consigo fazer de maneira mais técnica, sempre muito visceral, porque é um traço da minha personalidade, mas, ainda assim, um pouco mais técnica. E a poesia não, eu não tinha muita segurança. Então, quando ela vem é sempre um estado de ebulição, por isso que esse livro foi escrito, assim, no ônibus, em guardanapo. Tem uns que eu escrevi...não tinha caneta...escrevo com lápis de olho, com a primeira coisa que tem na frente para poder guardar aquele verso. E ele (livro) é muito cotidiano, não foi uma coisa: “Agora eu vou parar e vou escrever”. Não, foi, tipo, estou comprando banana e anotando alguma coisa.

JC - O processo de criação da poesia, em ti, é prazeroso ou doloroso ou as duas coisas?

É os dois. Escrever é sempre doído, sempre, mas é muito prazeroso. É um misto de sensações, porque como é sempre uma coisa que para mim, pelo menos, é muito visceral, é como se eu tivesse que ir num lugar muito profundo de mim que não é tão fácil de acessar, mas quando vem, tem um prazer muito grande.

JC  Mas a insatisfação com o que está no texto, você fica elaborando, apaga e corrige, não tá legal...é uma coisa que tem que refazer?

Fico, fico, fico...normalmente, é um detalhe. Vem tudo, aí tem uma frase que eu fico batendo cabeça até eu achar que está...

JC – E isso pode levar dias...

Isso pode levar anos, dias...(risos).

JC – Fica lá no canto e depois volta...

Tem uma poesia nesse livro que chama “Poesia incompleta”, que eu tinha anotado no bloco de notas do celular e eu salvei com esse nome, justamente, para eu me lembrar que estava incompleta, para eu trabalhar a poesia. Um dia, eu olhei e falei: “Eu acho que está completo, na verdade, eu acho que acabou.”, aí, pus, assim, e o nome ficou por conta disso, desse sentimento que não estava pronto. 

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CS – E você tem uma preocupação com o estilo?  É algo que vem na hora que você lê, que você pensa?

Eu me preocupo com o ritmo. Eu não uso rima e métrica, nem sempre. Então, eu me preocupo muito com o ritmo. Eu leio o poema em voz alta para ver se ele está cadenciado. Eu acho que isso que é importante para mim.

CS – E por que Vênus em Câncer...o título?

Vênus em Câncer é uma posição que eu tenho no meu mapa astral; e Vênus é um planeta do amor, do desejo, dos prazeres. Câncer é um signo da casa, do lar, da memória, então, essa é uma posição muito passional, é uma posição de muita sensibilidade. E eu acho que a minha poesia vem um pouco desse lado meu, porque eu também sou virginiana, então, eu sou muito mental também, sou muito prática, pragmática. Só que tem esse lugar de onde eu acho que vem isso...e eu achei que era da Vênus em Câncer, por isso tem esse nome.

JC – Os poemas são lindíssimos e você, a cada vez que relê, mais se emociona...

Ai, que lindo! Obrigada!

CS - A minha poesia predileta do livro é a da primavera, a que começa com a primavera...eu acho linda...

É para minha irmã...

CS – É para tua irmã, olha só que coisa bonita...eu queria uma coisa difícil, saber qual é a tua poesia predileta desse livro?

Ah, é muito difícil mesmo. Eu acho que é “Facada”. Um poema fofo (risos), que tem esse nome, é uma coisa fofa...(mais risos). Eu acho que é porque para mim foi uma poesia muito significativa. Quando eu fiz, teve um peso grande e eu lembro que foi a primeira poesia que eu tive coragem de mostrar. E comecei a ter respostas de algumas pessoas. Eu lembro que eu postei no Facebook e o Salgado Maranhão (poeta e compositor maranhense) fez um comentário elogiando e aquilo foi muito significativo, porque eu admiro muito ele. Então, foi uma poesia que me validou para mim mesma.

JC - Você já se experimentou como letrista? Porque suas poesias têm um potencial grande. Hoje o poeta que não conseguir (se inserir)na grande escala de consumo, de divulgação, fica com uma arte belíssima, mas de poucos...

Eu tenho um projeto com a minha mãe, que é cantora, a Patrícia Mellodi, que chama “Hereditário”, com as minhas poesias que ela musicou. A gente tem algumas composições juntas, com poesias que estão aqui (no livro) e outras que não estão, que ela foi musicando. A gente está com seis músicas e estava querendo fazer uma EP (Extended play, o mesmo que CD). Tem uma que já está no Spotify (tipo de biblioteca musical com acesso pela internet), que é “Facada”, que a gente fez. E tem outra música com a minha mãe que se chama “Do outro lado Lua”, que é um poema muito antigo, nem está nesse livro, que eu fiz para ela, ela musicou e pôs no CD. Então, tem, mas são com a minha mãe. E é muito legal porque flui muito fácil, a gente tem muita sintonia. Então, encaixa, perfeito. A gente não teve que mudar nada.

JC– E o acesso a esse trabalho?

Tem no Youtube e no Spotify. Está superfácil. Tem uma faixa só do “Hereditário”, porque a gente está fazendo faixa a faixa, aos poucos, mas o “Facada”, o poema que eu falei, está lá.

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JC – O Gullar (poeta maranhense) fala que o poema que não fala do preço do feijão não é legal. Você acha que a poesia tem que inserir, assim, o contexto da realidade ou ela não é obrigatoriamente uma poesia panfletária e que briga com a realidade, denunciante? Nós estamos vivendo tempos difíceis...

Ah, eu acho que não. Eu acho que a poesia é livre. Eu não tenho nenhuma poesia que fale do preço do feijão, embora, eu seja uma pessoa muito politizada na vida particular e pessoal. Eu tenho muito interesse, tenho muitas causas, sou muito ativa nesse sentido. Eu não sinto muito que é o espaço da minha poesia, que a minha poesia seja para isso, mas eu acho que tudo bem, ótimo quem faz, incrível quem usa a arte para isso. E eu acho tudo bem quem não faz também. Porque a gente precisa de todas as formas de arte, de todo jeito. Eu acho que mesmo que eu não traga uma ideologia (na poesia), o fato de eu ser uma pessoa que tem as minhas ideologias já é uma contribuição nesse sentido.

CS – Você é uma artista que luta pelas suas causas...você acha que a literatura feita por mulheres precisa de mais espaço?

Sim, urgente! Sempre que eu posto livro, coisas (nas redes sociais), eu boto “#leiamulheres”. Eu estou sempre falando sobre isso, porque foi quando eu me dei conta. Eu fiz uma lista dos livros que eu mais gostava, que foram marcantes na minha vida. Aí, eu falei: “Meu deus, onde estão as mulheres?”, e me deu aquele baque. Tem muitas escritoras que até hoje precisam botar sigla – como a J. K. Rowling do Harry Potter – teve que pôr, porque se pusesse o nome feminino, venderia menos. Então, é uma coisa que a gente tem que falar. Sai sempre assim, listas de escritores do ano, tem duas mulheres, uma mulher...

CS – E você é uma leitora mesmo de poesia?

Hoje sou! Eu nunca fui tão ativa na poesia. Eu acho que a faculdade me deu isso. Eu passei a ler poesia e hoje em dia eu acho que é o que eu mais consumo. 

JC  – Foi o Pessoa (poeta português) que mais fez tua cabeça?

Foi o Pessoa, mas outros incríveis também. Tem uma poeta que chama Sofia de Mello Breyner, que é uma poeta portuguesa, que é fantástica, que também mudou a minha cabeça. Quando eu li os poemas dela, eu fiquei, tipo: “Eu nem sabia que dava para fazer uma coisa, assim, com palavras”. E tem muitas mulheres ativas fazendo isso agora. Tem a Alice Ruiz, Elisa Lucinda, Adélia Prado. E (tem) uma nova geração de meninas muito novas que estão fazendo uma poesia muito boa. Tem a Alice Sant’Ana, tem Angélica Freitas, tem um grupo de mulheres novas que estão trazendo outra identidade, que estão muito ativas e tem um público muito grande.

JC  – No poeta há essa sensibilidade que é aguçada, suas experiências são muito intensas, por exemplo, a paixão, o querer bem, pela mãe, pelo pai, pelo cara amado, é um negócio dilacerante...  

Eu sou muito visceral. Eu sou muito intensa, muito, muito. É tudo muito. Eu acho que se eu não tivesse essa ferramenta para canalizar, que me deixa um pouco mais tranquila, eu ia ser uma pessoa que explode dentro de si. Eu acho que eu não ia dar conta da minha intensidade. Eu sou muito intensa. Eu sei que eu não imprimo isso num primeiro momento. Aí, quem dá um passo além para me conhecer, fala: “Eita, é intensa mesmo!”. Eu acho que se eu não canalizasse isso em arte, ia ser até difícil conviver comigo.

CS – Você é filha de artistas, da Patrícia Mellodi e do João Cláudio Moreno, ele está completando 30 anos de carreira. E uma coisa que eu achei interessante é que ele inseriu nesse show de comemoração desses 30 anos, poesias suas. E, aí, eu te pergunto: você é bem-humorada? O humor é uma coisa importante na sua vida?  

Eu sou bem-humorada. Engraçado que, às vezes, as pessoas falam: “Nossa, você é engraçada!”. Eu falo: “Gente, eu sou filha do João Cláudio” (risos). Alguma coisa está aqui, né?! Eu acho incrível poder fazer humor. Não é uma coisa que eu faço com a minha arte tanto, mas está aqui. E eu acho que eu venho cada vez desenvolvendo isso mais. É uma coisa que eu descobri que eu tinha em mim há pouco tempo, fazendo roteiro. Eu faço muito roteiro de humor. E eu fiquei: “Gente, por que que eu faço tanto roteiro de humor, de onde veio isso?”. Ora, é óbvio, eu passei uma vida inteira vendo meu pai fazer humor.  

JC – A experiência de ser filha de gente famosa é uma experiência que liberta, asfixia ou que são as duas coisas ao mesmo tempo?

Ah, ter pais artistas é muito especial. Ter passado a minha vida inteira no palco é uma experiência muito diferente. Acho que ninguém tem isso, de ficar a vida inteira vendo os pais subindo no palco, aquela outra personalidade – o pai e a mãe e os artistas que estão ali e tal. Por um lado, é difícil porque você já vem com uma certa pressão. E os meus pais são muito bons, são geniais e não é porque eles são meus pais, é porque sou muito fã de verdade. Então, você já parte de um lugar de comparação, de excelência, mas, ao mesmo tempo, facilita muito, porque você vê que é possível (ser artista). Muita gente tem talento, tem vontade, mas tem medo de dá voz...acha que não vai ter espaço. Me ajudou muito ver que mais pais já estavam vivendo de arte, estavam abrindo caminho, criando. E a minha casa sempre foi muito criativa e os meus pais sempre me deram todo apoio do mundo, me incentivaram. Quando viram que eu gostava de escrever: “Ah, vamos fazer um livro, vamos fazer num sei o quê”. Eles deram muito suporte.

CS – Você participou de um roteiro importante de uma série chamada As Guardiãs da Floresta. Como foi essa experiência?

É uma série documental sobre lideranças amazônicas femininas e foi um trabalho que mudou a minha vida completamente, eu sou outra pessoa depois de fazer Guardiãs. Porque eu soube de coisas que eu não fazia a menor ideia. Tive contato com causas e com a Amazônia e não tem como estar lá e não sair transformada. E a causa da floresta, da preservação ambiental sempre foi uma coisa que comoveu, mas não de uma forma muito ativa. Quando eu voltei dessa experiência passou a ser a causa da minha vida mesmo, maior que qualquer outra. Porque eu acho que essa é a mãe de todas as lutas; porque se a gente não tem floresta, a gente não tem nada pelo que lutar. E é muito grave o que está acontecendo. A gente está com a floresta muito devastada e a maior parte das pessoas realmente não sabe. Eu não sabia também e eu sei porque eu estava lá. E ver é muito diferente, a gente sabe que tem florestas devastadas, mas quando você olha e vê o que restou de floresta e todo o espaço que está virando pasto pelo agronegócio...enfim, é muito triste, muito grave e é um problema urgente, não é um problema que a gente tem muito tempo para resolver, a gente tem que resolver agora.

CS – Apesar de você morar no Rio de Janeiro há bastante tempo, você falou que sempre vem para Teresina. Como é a tua relação com o Piauí?

Bom, sempre que alguém pergunta isso ou fala: “Mas você é carioca”, eu falo: “Não sou não”. Eu mostro minha tatuagem, porque eu tenho o mapa do Piauí na perna, agora não dá para ver porque está coberta. Não foi um acidente geográfico eu ter nascido aqui. Não foi, uma coisa: “Ah, eu nasci no Piauí, mas eu sempre morei no Rio, eu não tenho nenhuma ligação”. Tem um sentimento muito forte de pertencimento e de identidade. É uma coisa que eu não sei nem explicar por quê, eu simplesmente me sinto daqui. E sempre que eu venho, eu me sinto juntando umas pecinhas que ficaram faltando e encaixando. Eu amo tudo que vem daqui. Eu amo o sotaque, eu amo a comida, eu amo o calor. Eu chego nesse calor, aí, eu falo: “Que delícia esse calor do Piauí”, juro! (risos). Eu gosto de tudo, eu me identifico com tudo. Eu sinto que esse é o meu lugar. Eu sou muito apaixonada pelo Piauí.  

Por Catarina Santiago

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